Filiação Socioafetiva – o reconhecimento dos laços de amor entre pais e filhos de criação
A filiação, como é sabido, é constituída pelo vínculo de parentesco, que se dá pelo critério biológico ou socioafetivo. No entanto, sendo reconhecida a filiação através da socioafetividade, diz-se que daquela relação aparente houve o surgimento do que se chama de “posse do estado de filho”.
Isto é, a relação paterno/materno-filial estabelecida entre duas pessoas, uma na qualidade de pai ou mãe e a outra na qualidade de filho, de forma duradoura e pública, como se parentes biológicos fossem quando na verdade não são, traz ao mundo jurídico, através da teoria da aparência, a posse do estado de filho.
Sabe aquela frase muito conhecida, que diz: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”[1](GRIFO NOSSO)?! Pois então, o tema em testilha trata justamente sobre isso, sobre a criação de um filho de outra pessoa, mas que o temos como se nosso fosse, dando-lhe abrigo, carinho, educação, amor e amparo, surgindo a partir dessa relação de parentalidade afetiva, após juridicamente reconhecida, direitos e deveres inerentes à solidariedade familiar.
O parentesco civil, pelo critério socioafetivo, não vem expressamente da lei, pois o artigo 1.593, do Código Civil fala em “outra origem”, ou seja, remete o leitor à verdade real, à prova do vínculo parental através do afeto. Então, para fins do nosso estudo, podemos dizer que pai/mãe afetivo é aquele que ocupa na vida do filho o lugar efetivo de pai e mãe, porque desempenha a função como se assim o fosse.
Vejam que não se confunde genitor(a) com pai/mãe afetivo, uma vez que o primeiro decorre do vínculo biológico, daquele que possui o poder familiar, enquanto que o segundo advém do afeto construído pela convivência familiar estabelecida pela vontade das partes. Não confundam filiação socioafetiva com “adoção à brasileira” (sendo esta caracterizada pelo registro de filho que não é seu, sem o devido processo legal)! Esta última é uma categoria da socioafetividade, mas que também – ao fim e ao cado – é norteada pelo vínculo afetivo construído entre adotante e adotado, mesmo que essa conduta seja considerada ilícita.
Na filiação socioafetiva as pessoas enxergam o grupo familiar como se as relações de parentesco ali estabelecidas tivessem tido origem pelo vínculo biológico, pois o tratamento entre estes personagens configura uma relação de família propriamente dita, visto que o pai desempenha o papel de pai, a mãe desempenha o papel de mãe e o filho, por sua vez, assume seu estado de filho, surgindo aquela expressão popular do “filho de criação”.
Não há vínculo biológico, mas sobra amor! Sobretudo porque as partes envolvidas assim desejaram e assim se sentem, como pais e filhos, ligados entre si pelo afeto.
Já diziam os antigos: “pai e mãe é quem cria”. E no Direito das Famílias, onde se prima pelas relações de afeto, não poderia ser diferente.
Os filhos no campo da socioafetividade são conquistados pelo coração, diante de uma relação fraternal diária, que vislumbra a construção desse afeto pelo cuidado entre pessoas com diferente carga genética. Essa filiação, para ser reconhecida juridicamente, precisa ser comprovada de forma inequívoca, trazendo aos seus partícipes direitos e deveres recíprocos, tanto na esfera pessoal como patrimonial.
Veja-se que a ação judicial declaratória de paternidade/maternidade socioafetiva não tem caráter excludente e, por isso, pressupõe a inclusão do pai afetivo ou da mãe afetiva na certidão de nascimento do filho, assim como de seus ascendentes (avós afetivos); ou, ainda, de ambos, desimportando na necessidade de excluir os pais biológicos, em que pese haja entendimento contrário. Ao falar-se em exclusão de pais biológicos, entramos no campo da adoção, que não é tema do nosso artigo de hoje. Inclusive, esse tema sobre multiparentalidade foi amplamente discutido pelo Supremo Tribunal Federal na Repercussão Geral nº 622, que assim menciona:
“a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. (GRIFO NOSSO)
Dessa forma, entende-se como requisitos para o reconhecimento da paternidade/maternidade socioafetiva os que seguem: o tratamento entre pessoas, com diferente origem genética, que se comportam como pais e filhos; convivência familiar; estabilidade de relacionamento; afetividade e a fama pública dessa relação parental.
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Desde 2017, através do Provimento nº 63 do Conselho Nacional de Justiça, já é possível o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva pela via extrajudicial, isto é, diretamente no cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais onde estiver registrado o assento de nascimento do filho afetivo (podendo se dar também no cartório de preferência dos requerentes), desde que cumprido alguns requisitos, como: o pai ou mãe afetivos precisam ser pelo menos 16 anos mais velhos que o pretenso filho; somente filhos maiores de 18 anos podem requerer tal reconhecimento afetivo; em sendo o filho menor, haverá a necessidade de colher a assinatura dos pais deste, podendo ocorrer o suprimento judicial; havendo disputa judicial sobre paternidade ou adoção, o reconhecimento fica impossibilitado. Em 2019, com o Provimento nº 83 do CNJ, houveram algumas modificações significativas no ponto, quais sejam:
- O reconhecimento somente se dará pela via extrajudicial, para filhos maiores de 12 anos;
- A paternidade ou a maternidade deve ser estável e pública, devendo o registrador atestar a existência do vínculo afetivo por meio das provas contundentes apresentadas, as quais ficarão arquivadas no cartório;
- Sendo o filho menor de 18 anos, haverá a necessidade de consentimento deste;
- É obrigatória a apresentação de parecer pelo Ministério Público e sendo este desfavorável, não haverá a possibilidade de registro pela via extrajudicial;
- Somente será permitida a inclusão de apenas um ascendente afetivo, ou seja, ou pai ou mãe. A inclusão de mais de um depende de autorização judicial.
Como se vê, a socioafetividade é amplamente amparada pelo Direito das Famílias, o qual prioriza o afeto construído nas relações familiares existentes. Desse modo, sendo as partes concordes, o reconhecimento socioafetivo poderá se dar diretamente no Registro Civil, sem a necessidade de representação por advogado. Contudo, havendo litigiosidade entre as partes, no tocante à paternidade/maternidade requerida, a via judicial se fará obrigatória, posto que demandará de um contexto probatório mais aguçado no ponto.
Pelo exposto, se vê que as relações de afeto têm, a cada dia, crescido em nossa sociedade, tirando o espaço daquela concepção retórica e atrasada de uma família conceitual e rígida no âmbito de sua formação de vínculos.
[1] Antoine de Saint-Exupéry
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Advogada, graduada pela Unisinos; inscrita na OAB/RS 71.434; Especialista nas áreas de Direito Civil, com ênfase em Família e Sucessões, e Imobiliário; Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM/RS; Integrante da Comissão de Infância e Juventude do IBDFAM/RS.